quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Os Melhores Filmes da Década

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Fui uma vez mais surpreendido pela New Yorker. Desta vez foi Richard Brody, um crítico de cinema que escreve regularmente na revista e autor do livro “Everything Is Cinema: The Working Life of Jean-Luc Godard”.:
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Brody fala-nos da sua lista de melhores filmes da década que são, segundo ele, “the twenty-six best movies I’ve seen”. Trata-se de uma lista polémica com obras discutíveis, a maioria das quais não muito conhecidas e muito pouco comerciais. Uma viagem pelo mundo com realizadores e obras de vários países e sobre os mais variados temas. Brody é um erudito da sétima arte, um especialista em cinema “hermético” e um apreciador de escolhas arrojadas. Do francês Jean-Luc Godard ao chinês Wang Bing, Eastwood e Ingmar Bergman temos uma montra de especialistas e de metódicos, onde curiosamente o cinema americano não tem muito significado.
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Mas o mais surpreendente na sua lista é a inclusão de dois filmes portugueses. O primeiro, classificado em quarto lugar, no grupo dos dez melhores é “Um Filme Falado” de Manuel de Oliveira, realizado em 2003. O segundo, integra a lista dos dezasseis outros filmes, sem ordem de preferência, é “Juventude em Marcha” de Pedro Costa, realizado em 2006.
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É curioso que estes dois filmes integrem esta lista erudita de Brody quando em Portugal passam completamente despercebidos. É um facto que existe um certo preconceito relativamente a obras e realizadores portugueses, por diversas razões, umas mais fundamentadas e realistas do que outras. Eu próprio me penitencio por preferir, sistematicamente, filmes americanos e trabalhos mais comerciais. Deixo-me seduzir pelo marketing e por certas temáticas mais actuais, porventura. De qualquer forma devemos reconhecer mérito a muitas obras comerciais, quer pela qualidade de representação, quer pela hábil politica de divulgação adoptada. Gran Torino, obra de Eastwood, é disso um bom exemplo, já aqui referido num post anterior, integra também a lista de Brody.
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Confesso que sinto um certo estigma relativamente à obra de Manuel de Oliveira, facto que não acompanha a enorme admiração que nutro pela personagem. Admiro a sua vontade de viver, a sua imensa capacidade de produzir, o seu amor ao cinema. Oliveira, como acontece com muitos outros portugueses, é mais reconhecido e melhor tratado no estrangeiro. Fora de portas apreciam-nos com maior isenção e sem cobiça ou inveja.
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Estimulado pela classificação da New Yorker e tomado pela curiosidade assisti a “Um Filme Falado” de Manuel de Oliveira. É sem dúvida uma obra muito rica e interessante. Um documento histórico que relata uma viagem pela civilização. Funciona um pouco como uma aula de história e um "banho" de cultura.
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Rosa Maria, a personagem principal, é professora de história e toda a vida ensinou os clássicos, o nascimento e a evolução das civilizações. Agora, na sua viagem pela civilização Mediterrânea, para se encontrar com o marido em Bombaim, vai poder visitar os locais com que sempre tinha sonhado. Na companhia da filha que simboliza a evolução e a vontade de aprender, visita Ceuta, Marselha, as ruínas de Pompeia, Atenas, as pirâmides do Egipto e Istambul, evocando assim tudo o que de decisivo marcou a nossa cultura ocidental.
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Apesar do ritmo habitual de Manuel de Oliveira estar bastante presente, a evolução temporal e sobretudo a mudança de geografias atenuam este facto, tornando o filme numa espécie de documentário histórico. Actores de primeira linha como John Malkovich e Catherine Deneuve contribuem igualmente para dar aquele toque de qualidade que um realizador português tem sempre dificuldade em alcançar de per si.
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Registo o diálogo entre mãe e filha sobretudo no que à componente histórica diz respeito. "As referências às guerras sucessivas, religiosas e económicas que acabaram por fundar o substrato cultural, não homogéneo, do continente europeu, em que elementos da cultura greco-romana, árabe e de várias religiões se misturam".
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Um documento de cultura bastante bem conseguido, que enriquece o nosso património de conhecimento.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Uma Questão de Mérito

(Deixo o meu artigo publicado hoje no Semanário Sol)
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O nosso país está cada vez mais embrenhado numa lama caciquista e oportunista. A dificuldade em valorizar o mérito e em recompensar a qualidade é uma postura que nos caracteriza. Ainda não fomos educados para saber lidar com avaliações, com classificações, com rankings ou diferenciações. O desconforto da concorrência, o medo de sombra, o receio de perda de controlo, a teia de interesses e de protecções, a aversão à mudança e o receio da novidade são traços dominantes e, curiosamente, tão mais relevantes quanto maior é a tentacularidade do Estado.
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Os últimos anos têm sido preocupantes em termos de aumento do peso do Estado na economia e na sociedade e, em Portugal, esta situação atinge proporções aflitivas. Fruto da abordagem “Keynesiana” da crise actual, ou a pretexto desta, o poder tentacular do Estado tem aumentado a olhos vistos. Neste momento, temos cerca de 700 mil funcionários públicos e cerca de 100 mil funcionários no sector empresarial do Estado ou em empresas indirectamente ligadas ao Estado ou controladas por este, já para não falar na miríade de empresas que gravitam em torno dos dinheiros públicos.
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De qualquer forma, é a própria sociedade portuguesa que se encontra mergulhada num manto diáfano de clientelismo, de “amiguismo”, de conhecimentos políticos, de ligações corporativas e tem um verdadeiro pavor da valorização pelo mérito. A apologia do “tipo porreiro” que não levanta ondas, que não coloca entraves e que pertence ao grupo dos “amigos” constitui o perfil ideal para o sucesso. Capacidade de liderança, conhecimentos de gestão, experiência internacional, ousadia, coragem e determinação, clarividência e inteligência não são apreciados.
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É evidente que temos um problema sério com o mérito. Acredito que uma das razões para o sucesso dos Estados Unidos em termos sociais e económicos, uma das razões para que seja um país de oportunidades, uma sociedade de sucesso, o verdadeiro “American Dream”, tem a ver com a compensação do mérito. É gratificante ser bom e é natural esperar uma recompensa por isso.
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O Estado Americano é o maior empregador com cerca de 2 milhões de civis e um orçamento anual de vários triliões. Esta imensa e complexa organização é gerida por 1455 nomeados políticos assumidos (political appointees) que vão e vêm com as diferentes administrações e cerca de 7000 executivos de carreira (SES), nomeados através de um processo isento e imparcial.
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Os executivos de topo da administração pública têm o seu estatuto enquadrado no Senior Executive Service, criado pela administração Carter através do Reform Act de 1978. Carter estava preocupado com os funcionários públicos, com o seu estatuto, a sua reputação, a excessiva influência política, o nepotismo, a falta de capacidade de rejuvenescimento e o baixo grau de atractividade para trazer gente nova e competente para as suas hostes.
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Esta classe de executivos de elite partilha valores e perspectivas e é caracterizada pela capacidade de liderança e pelos sólidos conhecimentos técnicos, devidamente reconhecidos pelo mercado e funciona à luz de um ambicioso e desafiante sistema de gestão por objectivos. Os SES são incentivados a circular transversalmente pelos diferentes organismos do estado e são responsáveis pela sua actuação e pelos resultados da organização a que pertencem. Estão, além disto, integrados num sistema de carreira e de compensação suficientemente desafiante para concorrer com os melhores.
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O também chamado “Merit-Based Executive Service” assenta num conjunto de pressupostos; excelência de actuação ao nível do funcionalismo público; ligação entre a actuação da gestão e a obtenção de resultados; estabelecimento e comunicação de objectivos e expectativas individuais e organizacionais; medição sistemática de resultados utilizando métricas que equilibram resultados organizacionais com satisfação de clientes e desempenho de funcionários; utilização de resultados como base para a atribuição de compensações, prémios, progressão e retenção de talento.
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Todos os anos, o Presidente atribui aos Senior Executives o chamado Presidential Rank Award. O propósito é o de premiar o mérito e os resultados obtidos, recompensar aqueles que de forma consistente revelam capacidade, integridade e compromisso com a excelência. Os que são distinguidos com tão elevado galardão, para além da honra presidencial, recebem uma compensação monetária que pode variar entre os 20% e os 35% do seu salário base anual. Importa referir que os SES usufruem de um escalão salarial com uma banda de variação entre os 117 mil dólares e os 177 mil dólares anuais, o que revela bem a importância dada a esta elite da administração pública.
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Este é mais um exemplo de sucesso que nos deve fazer pensar. Por tudo isto, precisamos de fazer melhor, por tudo isto, precisamos de mudar, de quebrar o ciclo da mediocridade, da acomodação, da corrupção e da aversão à mudança. Devemos promover o conhecimento, premiar o mérito, incentivar a competição, praticar a isenção, separar a política da competência, ou continuaremos neste ciclo de decadência e de inconsequência até ao limite da irrelevância total.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Kindle Português!

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É sempre um prazer enorme falar de livros e, de quando em vez, volto a este tema porque me seduz particularmente e porque os livros fazem parte integrante da minha vida. Um livro é um mundo por descobrir, uma fonte inesgotável de saber e de conhecimento, uma companhia de cumplicidades.
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Nada é comparável à presença física dos livros, a não ser talvez as obras de arte, eles aquecem o ambiente e trazem luz aos espaços; as capas de cores variadas escondem segredos bem guardados, a diferença de tamanhos antecipa histórias encantadas; o cheiro a cedro trabalhado pelo saber encadernado contagia qualquer ambiente.:
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Muito tem o mundo evoluído nos últimos anos, muitas têm sido as transformações e as mudanças em termos de gestão da informação, controlo e armazenamento de dados, acesso e partilha de conhecimento. E até os livros têm vindo a estar em risco, substituídos primeiro por computadores, depois pela internet e agora pelos “ebooks”.:
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A este propósito, volto ao fantástico efeito Kindle, de que já aqui falei. Sem dúvida uma das mais notáveis invenções dos últimos anos; a informação e o conhecimento portátil, dezenas de milhares de livros no bolso de um casaco. O Kindle, mais do que substituir os livros, vem divulgar a leitura e angariar novos leitores. Mais pessoas em mais locais poderão ter acesso a um livro, à distância de um “click”. Felizmente o Kindle já chegou a Portugal, e, mais do que isso, a língua portuguesa já chegou ao Kindle.
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O romancista brasileiro Rubem Fonseca será o primeiro autor de língua portuguesa a ter um livro lançado em versões para Kindle e iPod, além do formato tradicional em papel. "O Seminarista", da editora Agir, chegou às livrarias em Novembro passado.
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Segundo a biografia que se encontra no seu “site”, na internet: “Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1925. Formado em Direito, exerceu várias profissões antes de se dedicar inteiramente às actividades literárias. Acredita, como Joseph Brodsky, que a verdadeira biografia de um escritor está nos seus livros. Mora no Rio de Janeiro desde os 8 anos de idade”. Mas mais do que isso: “Rubem Fonseca é provavelmente o escritor vivo mais estudado fora do Brasil. Tomando-se a literatura brasileira de todos os tempos, talvez ele só perca para Clarice Lispector. Ele é hoje considerado um mestre da ficção policial à escala mundial, e os seus livros fazem parte do cânone da literatura latino-americana." Quem o afirma é o americano Thomas Waldemer, director do Departamento de Estudos Latinos da Universidade do Iowa.
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De acordo com um trabalho sobre o autor na revista “Bravo”: “A carreira internacional de José Rubem inclui prêmios de prestígio como o Juan Rulfo e o Camões, ambos em 2003. Os prémios pelo mundo e a avaliação da academia americana (o escritor chegou a ser professor-visitante em Stanford, uma das mais prestigiodas universidades dos Estados Unidos) coroam um percurso ímpar na literatura brasileira”.
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Rubem Fonseca é curiosamente um apaixonado dos Estados Unidos, onde foi aliás beber muita da sua inspiração. Estudou em Boston e viveu em New York, no famoso “Chelsea Hotel”. “Segundo os seus amigos, José Rubem se apaixonou pelos Estados Unidos. Quando falavam mal do país de John Kennedy - algo que era moda no Brasil dos anos 50 e 60 -, José Rubem cortava na hora: "Deixa de ser ignorante" (Revista Bravo).
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Este seu último livro, “O Seminarista”, conta-nos a história de um matador de aluguer, conforme refere o Jornal do Brasil: “Ex-seminarista – daí o título – na verdade é conhecido no métier como o Especialista: mata sempre com um teco na cabeça. Vive citando brocardos, axiomas e sentenças latinas. No original. Dá-lhe Horácio, Cícero, Virgílio, Petrarca, Plínio o Velho, Santo Agostinho, Propércio e outros menos cotados. O personagem – cujo nome de batismo é José, mas gosta de ser chamado apenas de Zé, como Zé Rubem, que é como os amigos mais íntimos tratam o escritor – vai descobrir que não é assim tão fácil se aposentar. Também grande admirador de poesia – dá-lhe Pessoa, Drummond, Bandeira, Gullar, Dickinson, Blake, Frost, Ahkmatova – vale-se de Camões para explicar a decisão de não mais cometer assassinatos: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Para se convencer de vez, apela para Sêneca: “Alia tentanda est via” (“Deve-se procurar outro caminho”). O problema é que é muito difícil mudar de vida – ou de estilo. Tanto para o Especialista quanto para Rubem Fonseca”:
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Apesar de não ter lido o livro, parece-me uma boa escolha para o primeiro Kindle português.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Happy Thanksgiving!

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Os Estados Unidos celebram hoje, quarta 5ª Feira do mês de Novembro, o “Thansksgiving Day”. Uma tradição secular que se transformou num feriado nacional em 1941. Historicamente surgiu como uma cerimónia religiosa para dar graças e agradecer a Deus pelas colheitas, pela comida, pela protecção em termos gerais.
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São várias as versões sobre a sua verdadeira origem e sobre a data e o local da primeira celebração. A mais utilizada aponta para a “Plymouth Plantation” em 1621, aquela que haveria de se tornar uma das 13 colónias que deram lugar aos Estados Unidos da América. Esta primeira cerimónia durou cerca de três dias e teve como propósito agradecer a Deus a ajuda que concedeu aos “pilgrims” (primeiros habitantes), permitindo-lhes sobreviver a um Inverno rigoroso e difícil.
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A partir de 1863 transformou-se num tradição anual e gradualmente foi deixando a sua componente religiosa, sem dúvida a sua matriz de origem, passando a uma celebração da família cada vez mais mundana.
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O “Thanksgiving Day” é actualmente um dia de festa e de celebração, um dia da família e de convívio que se enraizou no espírito americano e que é vivido de forma intensa e dedicada por todas as classes, por todas as raças e credos, assumindo até um papel mais relevante do que o próprio Natal, uma verdadeira celebração do “melting pot” americano.
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Este ano o discurso do Presidente faz referência às dificuldades da economia, ao drama do desemprego e aos americanos que se encontram um pouco por todo o mundo, em especial os que se encontram em teatros de guerra. Partilha algumas das medidas que está a preparar no sentido de combater o desemprego, em particular uma baixa de impostos para revitalizar a economia, e a reforma da saúde que gradualmente tem vindo a tomar forma. É quase inevitável não ser contagiado pelo discurso credível, genuíno e empenhado deste Presidente. Estamos todos esperançados em melhorias significativas para o próximo “Thanksgiving”, como refere também Obama.
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Este dia, à semelhança do “Thanksgiving” de 1939 ocorre num tempo difícil, vive-se uma recessão que apesar de diferente nos aproxima da Grande Depressão de então. Naquela altura, e pela primeira vez, o Presidente Roosevelt resolveu quebrar a tradição e antecipar a data das festividades com o propósito de alargar o período de compras antes do Natal, aumentando assim a possibilidade de receitas para o comércio e revitalizando a economia. A grandeza de Roosevelt é aliás indiscutível e reconhecida por todos, muito lhe devem os americanos, a sua capacidade de liderança, a sua inteligência e a sua coragem foram decisivas para a recuperação americana. Muito lhe deve o mundo e em especial nós europeus pela entrada dos americanos na II Guerra Mundial e pela sua ajuda inestimável na defesa da liberdade.
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Há um ano atrás passei este dia com uma típica família americana, numa Washington DC fria e chuvosa, a despedir-se das cores do Outono e a receber, de braços abertos, o Inverno de sempre. Fui acolhido por pessoas que não conhecia e nunca tinha visto, através do Program Fulbright a que pertencia. Foi uma das mais interessantes experiências da minha estadia e permitiu-me viver de perto esta celebração e comprovar a hospitalidade e a simpatia deste povo. Tivemos uma refeição típica com o tradicional peru, assisti ao ritual da sua preparação, o recheio (stuffing), e “mashed potatoes with gravy, sweet potatoes, cranberry sauce, sweet corn”, e o “pumpkin pie”. Deste dia fica-me a imensa capacidade para partilhar, o respeito pela diferença e a genuína vontade de conhecer e de aprender.
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Este ano participei no “Thanksgiving Dinner” organizado pela Comissão Fulbright que reuniu estudantes americanos que estão em Portugal, estudantes portugueses que se preparam para a sua aventura académica nos Estados Unidos e representantes de várias entidades, em particular a “Counselor for Public Affairs” da Embaixada Americana em Lisboa, a Dra. Abigail L. Dressel que partilhou uma mensagem do Presidente. É gratificante sentir que os Estados Unidos continuam interessados em partilhar a sua cultura, os seus conhecimentos e o acesso privilegiado ao saber, espero que assim nós os aproveitemos e consigamos aplicá-los a bem do nosso país.
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terça-feira, 24 de novembro de 2009

“Capitalism: A Love Story”


Participei ontem na ante-estreia do último filme de Michael Moore, “Capitalism: A Love Story”. Tratou-se de uma iniciativa inédita mas muito interessante da Universidade Católica, que convidou o Professor João César das Neves e o jornalista do Expresso, Nicolau Santos para um debate relativo ao filme em questão.
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Sala cheia, muitos estudantes e professores, antigos alunos e alguns “outsiders”, todos preparados para assistir a mais uma catarse mental deste contestatário militante. Efectivamente tratou-se de mais um dos filmes a que já nos habituou Moore, neste caso o seu quinto filme com algum relevo. Michael Moore especializou-se na contestação ao modelo de desenvolvimento americano dos últimos vinte anos e para isso leva a demagogia ao extremo, dramatiza, utiliza meias verdades, ilude, exagera e sobretudo aproveita-se de situações pessoais delicadas e sensíveis para veicular uma mensagem errónea e imperfeita.
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Em “Capitalism: A Love Story” a receita é a mesma de sempre, só que desta vez o focus é a crise financeira global de 2007/2009, a transição do governo de George W. Bush para Barack Obama e o pacote de estímulo à economia, sancionado pelo último.
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O propósito é destruir o conceito de capitalismo e culpá-lo por todos os males e por todas as desgraças que têm acontecido nos últimos anos. A crise do desemprego, os vorazes mercados financeiros, as selváticas companhias de seguros, a ausência de redistribuição da riqueza ou a insensibilidade do capital.
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Recorrem-se a exemplos chocantes de situações mal contadas ou direccionadas num determinado sentido e com um objectivo claro. Por exemplo, o caso das multinacionais que faziam seguros de vida para os seus funcionários e o relato de algumas situações em que funcionários, relativamente jovens, faleceram tendo as empresas recebido o valor clausulado no seguro. Efectivamente, pode parecer chocante mas a realidade é que foram as empresas que pagaram os seguros e durante este período o empregado podia morrer ou não, o risco era sempre da empresa e, além disso, a morte destas pessoas foi perfeitamente natural e não causada pela empresa empregadora.
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Como este, existem vários outros casos que uma análise mais isenta e objectiva desmonta com facilidade, foi o que aconteceu no debate que se seguiu.
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O debate pós-filme foi interessante e educativo. O Professor César das Neves possui uma capacidade única de tornar claro e acessível qualquer conceito mais elaborado, aliando a isto uma boa disposição e simpatia contagiantes. Como seria de esperar, criticou de forma demolidora a obra de Moore, em particular a forma demagógica e exagerada com este que apresenta situações verdadeiras mas descontextualizadas, aproveitou também para nos alertar para as vantagens que vieram com o capitalismo; o acesso ao crédito, impossível até há poucos anos, e a melhoria das condições de vida das populações.
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Acima de tudo, a questão está numa análise equilibrada da realidade. È natural que o capitalismo tenha falhas e ineficiências mas o fundamental é que se trata do pior sistema com excepção de todos os outros, conforme referiu Nicolau Santos. O ponto crucial para todos está no facto de que Moore critica mas não apresenta alternativas verosímeis, Moore descredibiliza ao mesmo tempo que revela desconhecimento dos assuntos (“too complex”) no que toca a derivados, por exemplo.
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Um filme interessante, por vezes chocante mas infelizmente com pouca credibilidade e muita demagogia. Não vale o custo de um bilhete de cinema! Seria talvez interessante pedir a Moore para realizar um filme sobre Portugal utilizando a mesma ironia e recorrendo aos nossos muitos casos mediáticos. Seria hilariante!

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A "New Yorker" fala Português

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A prestigiada revista americana “New Yorker” converteu-se definitivamente a Portugal. Primeiro e mais recentemente com Jorge Colombo e os seus desenhos sobre New York, no iPhone. As duas capas que conseguiu na revista e toda a mediatização que alcançou, falando sobre as suas origens e sobre o seu país.
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Mas Colombo continua a surpreender-nos com a sua influência na “New Yorker” e a grande procura dos seus desenhos. Ainda agora na edição on-line da revista, vários desenhos com a mesma técnica e idênticos resultados finais.

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A outra surpresa data de Maio passado e recai sobre uma reportagem extensa de Peter Conrad dedicada a António Lobo Antunes, intitulada “Doctor and Patient”.
Peter Conrad nasceu na Tasmânia e está radicado nos Estados Unidos há alguns anos. Colaborador regular de várias prestigiadas publicações, Conrad já escreveu anteriormente sobre Portugal na sua crónica sobre José Mourinho intitulada “O Grande Ditador”, no “The Observer”.

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Conrad caracteriza-o à luz do seu passado: “The Portuguese novelist António Lobo Antunes discovered his literary vocation while delivering babies, performing amputations, and carving up corpses. Lobo Antunes trained as a doctor, and in the early nineteen-seventies, during military service, he was dispatched to Angola, near the end of a futile war in which the faltering Portuguese empire grappled to retain its African colony. In a makeshift infirmary, he lopped off limbs while a queasy quartermaster—disqualified from operating because the sight of blood made him sick—turned away and recited instructions from a textbook. Lobo Antunes also assisted a witch doctor who presided over births”.
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A temática inevitável relativa à rivalidade Saramago vs. Lobo Antunes, é também tratada com grande atenção: “Internationally, Lobo Antunes is overshadowed by his older colleague José Saramago, who won the Nobel Prize in 1998. At home, the two writers, like rival political parties or sports teams, have noisy partisans, and those who cheer for Lobo Antunes claim that the wrong man won the Nobel. Lobo Antunes himself apparently agrees: when the Times called for a comment on Saramago’s victory he grumbled that the phone was out of order and abruptly hung up. Their cramped country may not be big enough for both men, but from a distance the internecine feud hardly matters. Good novelists are unique, which makes them incomparable”.
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Lobo Antunes é classificado como alguém que "permanece obsessivamente local, preocupado com as dores herdadas da história portuguesa e as debilidades culturais do país". O contrário de Saramago, sugere Conrad, cujas "parábolas seculares, geralmente localizadas em países imaginários, zarpam facilmente para a universalidade".
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Curiosa é também a abordagem, por nós já conhecida, da sua obsessão com o Prémio Nobel: “Brooding over the Nobel Prize, Lobo Antunes once said, “My medical career would terminate the moment I cash that check.” But his day job has been the making of him, and it isn’t easy to dissociate his artistry from his clinical skills. During his medical training, he attended what he calls “the lesson at the morgue,” and what he learned there shaped his methods as a writer”.
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Deixo uma última transcrição deste excelente artigo de Peter Conrad. A alusão ao passado grandioso de Portugal e a pergunta dolorosa mas realista, no final: “Lobo Antunes’s implosion of Portuguese history works so well because revenants from the country’s grandiose past can be seen all over Lisbon, stiff with rigor mortis. Statues of navigators, of the kings who prompted their expeditions, and of the bards who obsequiously sang their praises scan the horizon from the pedestals. Camões has a monumental column of his own; the nineteenth-century novelist Eça de Queirós embraces a lissome marble muse in a garden; and a bronze effigy of the modernist poet Fernando Pessoa sits at a table outside a café that he once frequented, looking as if he had metallized while waiting for a refill. (As yet, there is no statue of Lobo Antunes, but a street has been named after him in the northern town of Nelas.) The Portuguese are proud of these venerable ancestors, but they can’t help feeling belittled by them. How did a country that once counted Brazil, Angola, Mozambique, Goa, and Macao as outlying provinces forfeit its empire and retract to the cramped edge of the Iberian Peninsula?”

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Preocupante e Desolador

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Serão estas previsões suficientes para que os portugueses tomem consciência da situação actual e das perspectivas futuras? Serão as estimativas da OCDE suficientemente reveladoras da nossa incompetência e da nossa incapacidade? Face a um cenário arrepiante como este o que podemos nós fazer? Estaremos nós condenados à mediocridade e à degradação inevitável da nossa qualidade de vida?
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Confesso que me preocupa sobremaneira o estado actual do país e estou muito pessimista relativamente ao futuro. Parece-me que piorámos a todos os níveis, nos últimos anos, e a ideia ténue, de final dos anos oitenta, de que éramos o bom aluno da Europa desvaneceu-se por completo.
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Agora estamos piores em vários indicadores internacionais: “O sistema de saúde português está entre os piores da Europa. Tempos de espera elevados e falta de acesso rápido ao médico de família atiram Portugal para o 25.º lugar entre 33 países europeus. O mais recente índice europeu do consumidor e dos cuidados de saúde elaborado pelo "Health Consumer Powerhouse", com o apoio da Comissão Europeia, mostra que Portugal não foi além dos 574 pontos em mil possíveis, o que o coloca na 25.ª posição, atrás de países como a Macedónia, a Croácia ou a Espanha”.
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“Descemos novamente no ranking anual sobre a percepção da corrupção, segundo um relatório divulgado pela organização não-governamental “Transparency International”. O país obteve 5,8 pontos, numa escala de zero (altamente corrupto) a dez (altamente limpo), contra 6,1 pontos no ano passado, caindo da 32ª para a 35ª posição, entre 180 países avaliados”.
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“Dos 19 ministros das Finanças europeus avaliados pelo Financial Times (FT), Teixeira dos Santos surge em 15º, uma posição que o coloca perto do fundo da tabela”.
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Apenas alguns exemplos recentes da nossa brilhante actuação e a preocupação genuína com o futuro e com deterioração da nossa qualidade de vida. Tudo isso deve fazer-nos pensar, e muito!