quinta-feira, 7 de maio de 2009

Cultura Americana

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Não posso deixar de reproduzir a última crónica de Inês Pedrosa, no Semanário Expresso. Subscrevo-a na íntegra uma vez que traduz aquilo que, de forma tão transparente, penso e que sempre tenho procurado exprimir nos textos que tenho deixado aqui no blog.
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Na linha suave de uma Oriana Fallaci, que tanto aprecio, Inês Pedrosa fala-nos da força de espírito e da capacidade empreendedora “...eu nunca tinha visto Nova Iorque desgrenhada de desalento, e julgava que esta seria uma visão impossível. À ingratidão ela responde com orgulho e riso, do desespero faz raiva e força...”, fala-nos da visão de longo alcance “o poder dos Estados Unidos nasceu sempre dessa capacidade de pôr os olhos no futuro...”, fala-nos da cultura do mérito e dos benfeitores “....essa cultura do mérito faz toda a diferença e torna as universidades americanas cada vez mais internacionais - dedicadas aos melhores, independentemente de nacionalidades e rendimentos...” e fala-nos da energia e da vida deste povo que nunca baixa os braços, que nunca se resigna.
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......................................................Cultura Americana

"Já sabíamos que Nova Iorque resiste a tudo, da mais inócua inveja aos massacres do ódio cego. É essa coragem - tão judaica - de renascer sempre, e com uma energia construtiva imparável, que faz o génio luminoso desta cidade. Resistirá também a mais esta crise, sem dúvida. Eu nunca tinha visto Nova Iorque desgrenhada de desalento, e julgava que esta seria uma visão impossível. À ingratidão ela responde com orgulho e riso, do desespero faz raiva e força; agora encontro-a de chinelos de quarto e olhos papudos - sem sequer ter no dedo um cigarro para baforar de boémia a tristeza hiper-realista que lhe caiu em cima.

O que eu mais gosto de fazer em Nova Iorque é andar a pé. O meu amigo Jorge Colombo, que mora nela há muitos anos, habituou-me a passear pela cidade como por um imenso e mutante museu. As ruas de Nova Iorque são um mostruário do mundo e um caudal de inspiração. Acresce que ao lado do Jorge é impossível deixar escapar um qualquer pormenor deste particular universo urbano. Depois dos dailies (retratos de nova-iorquinos sortidos), Colombo faz agora iSketches, desenhos da cidade no iPhone, a pinceladas fortes, com a ponta dos dedos - a inovação foi saudada na comunicação social americana e inglesa e eis que, no auge da crise, Colombo se viu convidado para expor e vender estes trabalhos numa galeria de arte virtual
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Nas ruas de Nova Iorque sucedem-se as lojas fechadas com anúncios para venda - muitas delas ginásios. As pessoas voltam a ser treinadoras pessoais de si mesmas. A imprensa, a começar pelo "Wall Street Journal", publica comboios de textos gabando os méritos da alma (um vício barato). Muitos restaurantes estão vazios, mesmo à sexta-feira à noite. Fecharam revistas - ou mudaram as suas sedes para estados e cidades mais baratos. A falta de dinheiro vê-se, pesa no ar. Por outro lado, há um espírito de harmonia na cidade. Nas banquinhas de recordações para turistas, alinham-se estatuetas de Obama, T-shirts com louvores ao herói Obama, canecas encomiásticas com a cara de Obama. Falta o toque a mentol e maldade que fazia o picante da cidade no tempo em que estava cheia de vudus-Bush. Por quanto tempo continuarás santificado, Barack Obama? Ainda bem que não és branco, nem mulher. Sempre o estado de graça dura mais um bocadinho. Na capa da "New Yorker", o desenho do famoso cão de água português, posando solitário nos imensos relvados da Casa Branca, com focinho de quem pergunta uma de duas coisas: a) que faço eu aqui? b) como é que o meu dono vai safar-se? Mesmo desalentada, Nova Iorque sabe rir-se de si mesma e trabalhar sobre esse riso estimulante. Faz da frugalidade a nova moda e avança para o futuro.
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O poder dos Estados Unidos nasceu sempre dessa capacidade de pôr os olhos no futuro. As universidades americanas - tive agora a oportunidade de visitar várias - são o exemplo visível desse investimento; mesmo nas mais pobres é evidente uma preocupação de democracia real no acesso ao ensino, que se traduz em boas bibliotecas abertas em horários alargados (em certos casos, 24 horas por dia), e vastas e acolhedoras salas de leitura. Ninguém ficará discriminado por não ter biblioteca em casa, ou por não ter um quarto que seja seu. Onésimo Teotónio de Almeida, há longos anos professor na belíssima e famosa Brown University, em Providence, faz-me notar que os muitos alunos espalhados pelas bibliotecas, salas de leitura ou bancos de jardins estão, invariavelmente, a trabalhar. Essa cultura do mérito faz toda a diferença e torna as universidades americanas cada vez mais internacionais - dedicadas aos melhores, independentemente de nacionalidades e rendimentos.

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Há nos Estados Unidos uma cultura da participação cívica e da gratidão que se mostra extraordinariamente eficaz: as universidades são largamente sustentadas por benfeitores, muitos deles antigos alunos, que assim retribuem a formação recebida. Um aluno brilhante sem capacidade para pagar as propinas terá uma bolsa de estudo. Acresce que há também uma cultura de trabalho juvenil (na restauração, limpeza ou baby-sitting) para pagar os estudos superiores - cultura essa que favorece o empenhamento nos estudos, porque o que é difícil tem sempre mais valor. A crise acabará por desaparecer - ao contrário das universidades, dos estudantes, dos livros e do sol."
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